segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Quando algo cheira mal (ovo goro)

Edmar Oliveira



Fiquei com uma sensação de “algo cheira mal”. Não é um ainda “vai dar merda”, departamento psicológico de entendimento da certeza de que algumas ações estão absolutamente equivocadas no nosso “desconfiômetro”. Vou tentar explicar melhor.

Aconteceu numa ação que efetivamente, e sem nenhuma dúvida, foi uma ação “do bem”, para continuarmos no terreno das intuições necessárias aos seres de “boa índole”.

Logo imediatamente ao fato de que algumas bestas humanas espancaram um mendigo na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, e quase matam um cidadão que ousou defender a cidadania do desvalido, as redes sociais identificaram dois dos quase homicidas e um cartaz de “procura-se” circulou na internet provocando a prisão deles e declarando um terceiro identificado como foragido. Isso um pouco antes da notícia virar notícia na mídia oficial. Foi uma ação em que as redes sociais funcionaram na justa medida da função de cidadania. Orgulhamo-nos todos da ação, inclusive eu que ajudei a divulgar o cartaz de “procura-se”. Note-se o fato de que os três, antes da ação das redes sociais, já tinham se apresentado na delegacia e soltos, como cidadãos primários que eram, para responder o processo em liberdade. O clamor da denúncia fez aparecer uma outra vítima dos rapazes espancadores e a polícia teve de manter a prisão de uma segunda vez, revendo o seu procedimento comum, e pressionada pelo clamor circulante virtual.

Todo mundo já estava cansado da impunidade de nossa justiça, melhor dizendo injustiça, oficial. Tocar fogo em índios, mendigos e bêbados são “massacres da candelária” que os filhinhos de papai fazem por divertimento, contando com a impunidade de sempre. Não precisa citar os inúmeros casos que saltam na nossa memória. Depois eles viram advogados, médicos, engenheiros, quando não políticos, e vão corroer os pilares da civilização. Neste caso a ação resultou em prisão e precisamos continuar vigilantes acompanhando as apelações e manobras dos advogados para livrar da prisão crápulas inomináveis. A justiça tem que mantê-los na cadeia, julgá-los e penalizá-los conforme a lei e com agravantes de serem das classes mais favorecidas e não fazer desses requisitos atenuantes. A lei com o rigor da lei seria o justo, apesar de não mais acreditarmos na justiça da Justiça, só para ficarmos em posição de alerta.

Muito bem, se todos concordamos até aqui, porque, ou o quê, me “cheirou mal” nesse caso? Diria que o excesso de comemorações nas redes sociais: “bandidos!, covardes!, vermes!” acompanhavam comentários que entendi como se quase pulando a cerca da legalidade para um justiçamento dos meliantes nas redes sociais. Comentários pediam castigos explicitados para os malfeitores e prisão aos pais dos meninos que já eram adultos. Era como se cada um de nós soubéssemos exatamente a quem pertencia a culpa naquele momento. E para um crime bárbaro já teríamos a condenação com convencimento próprio. E mais: tive a sensação que se saíssemos das redes digitais virtuais para o mundo analógico real não me assustaria se nós, agora, cometêssemos a barbárie com os agressores agredindo-os fisicamente. Foi essa a sensação que não “me cheirou bem”.

Tentando explicar melhor só para chamar a uma reflexão. O mundo em que vivemos, e ajudamos a criar, produziu tais pessoas que condenamos. E temos que continuar condenando: pague-se o crime na lei. Mas quando queremos executar a lei, uma lei que nós acreditamos como certa ao nosso modo, não nos faz muito diferentes deles. O que pode nos fazer diferente é responsabilizar os infratores por seus atos perante a lei. E exigir que ela seja cumprida mesmo se os criminosos sejam nossos filhos.

Pois não só os pais são culpados na formação dos valores (e as vezes até o são, os exemplos estão na mídia com pais perdoando os “malfeitos” dos filhos), mas as instituições formadoras (escola, família, entre outras) e as instituições exemplares (igreja, polícia, político, justiça, elites) ruíram nesses tempos de individualismo competitivo.

Tempos propícios para que o ovo da serpente seja chocado. O ovo já parece goro. Precisamos estar atentos fiscalizando o mal em nós próprios. Porque o mal pode ser banalizado como nos ensinou Hannah Arendt, neles e em nós também. Foi isso que me cheirou mal. Não me sentindo melhor, mas percebendo quando eu também exalo um odor ruim e banal. Ou que um de vocês me chame atenção. Combinado?
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ilustração: "Urutu" de Tarsila do Amaral.

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