sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Não-Lugar




Edmar Oliveira
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Tem um não-lugar, aqui mesmo no espaço urbano, entre nós, para onde algumas pessoas são levadas. Carregadas, empurradas, por vontade própria, não vamos aqui discutir como se entra neste não-lugar. Mas acontece com homens, mulheres, crianças e velhos, que deixaram de circular no mesmo espaço em que circulamos, nós que temos a possibilidade de falar desse não-lugar. Eles, pessoas que não mais existem no nosso mundo, não sabem bem explicar como ali chegaram. Escorregaram, foram empurradas, fugiram desse mundo onde estamos, mas ao certo é que chegaram a este não-lugar.

Sou vizinho de um velho magro, que mora sozinho, num casarão em ruínas, mas que já está encontrando seu não-lugar. Pela manhã, sai do casarão passando um cadeado no portão, que não tem mais quase como ficar em pé, e guarda o seu passado na casa velha. Não deve ter nada de valor. Ele guarda a sete chaves para que seu passado não fuja daquele lugar. Mas o velho magro sabe que um dia vai sair de sua casa. Alguém vai querê-la. Fica numa mureta que circunda uma árvore próximo de sua casa. Ali parece habitar um não-lugar. Roupas sujas, cabelos e barbas a muitos esquecidos dos cuidados, a barba branca sempre suja com uma nicotina ruiva, os dedos também. Os óculos, fundo de garrafa, arranhados e embaçados parecem ter catarata, que os olhos do velho magro também têm.

Ao lado do velho magro, vez em quando senta um velho gordo, também de barba, mas sem óculos. As roupas do velho gordo são velhas e sujas, às vezes veste duas, três camisas. Vários pertences num velho carinho de compras com uma roda torta o acompanham. Aquele carrinho parece ser a casa do velho gordo, que já não tem a casa em ruínas do velho magro. O velho gordo carrega sua própria ruína e no carrinho já não cabem as lembranças de quando tinha um lugar. Hoje ele habita um não-lugar.

Cruzo com os dois velhos pela extensão da rua das Laranjeiras que acaba no Largo do Machado. O velho magro sempre encontro andando de volta à casa que ainda não perdeu. Mas como sabe que logo não a terá, procura conhecer aquele não-lugar. O velho gordo senta nos bancos do Largo do Machado como senta ao lado do velho magro na mureta que circunda a árvore na rua das Laranjeiras. O velho magro ainda compra seus cigarros e alguma coisa para comer. Não sei onde ainda consegue dinheiro. Talvez de uma aposentadoria defasada. O velho gordo às vezes encontra uma alma boa que lhe paga um refresco para comer com resto de pão que acha no lixo. Fuma um cachimbo alimentado por guimbas de cigarro que recolhe na via pública. Ninguém os vê. Não recebem qualquer cumprimento dos passantes.

 Às vezes os velhos tomam a calçada estreita dos transeuntes. Os transeuntes preferem esbarrarem nos carros que tocá-los. É quando o não-lugar ocupa o lugar real. Ao cumprimentá-los não respondem, como se não acreditassem que alguém de algum lugar possa cumprimentar que está num não-lugar.

 Deixando meus velhos, posso encontrar uma mulher ainda nova que anda com roupas imundas, fede a excrementos, e carrega pesadas sacolas de livros, na maioria revistas velhas, encarte de jornais datados. Perto de uma escola, na rua Gago Coutinho, ela espalha suas revistas e livros velhos na mureta para vendê-los. Ela nada pede. Vende livros, ou imagina vendê-los. É como se a loucura tentasse tirá-la do não-lugar em que se encontra para que consiga um lugar no mundo aqui conosco. Outro dia levei uma quantidade de livros usados, mas que teriam  valor comercial, para ela. Não agradeceu, mas recebeu parecendo gostar. Outro dia passei e a vendedora estava com os livros expostos na mureta da escola. O máximo que fiz foi ajudar sua loucura a não se conformar com o não-lugar. Vender e se relacionar com alguém, é ter um lugar por um momento. Mas sei que a noite dorme na rua no seu não-lugar e come migalhas das latas de lixo num garimpo por comida comuns aos que habitam o não-lugar.

No Largo do Machado, à noite, meninos e meninas (algumas grávidas) agitam-se em bandos. Com eles alguns adultos jovens. Homens, mulheres, casais, filhos. Consomem tinner (cola de sapateiro) em garrafas de refrigerantes, álcool da tampa azul (álcool puro do supermercado) e crack em cachimbos. A mistura é explosiva, às vezes brigam. Outras brincam com a inocência das brincadeiras infantis junto com o vício de adultos. Também habitam um não-lugar. Como são muitos o não-lugar ocupa o espaço dos lugares reais. Costumam se reunirem mais à noite, tarde, quando o não-lugar pode se alargar no lugar do lugar real. Mas incomodam agora. Até porque o crack, antes ausente, é cocaína e um excitante que apaga a depressão causada pelo tinner.

É quando as políticas sociais aparecem para combater os efeitos, não as causas, que nunca ninguém se importou muito com isso. E as políticas parecem sempre estar incomodadas com o não-lugar aqui perto e não com as pessoas. Os invisíveis só se tornam visíveis quando o não-lugar ocupa o lugar do lugar do mundo real que não lhes tem mais lugar. Agora os vemos. E eles não são mais o velho magro, o velho gordo, a moça nova, os meninos da praça. Mas uma horda que ameaça o bem estar social. Só o poeta sabe cantar essa dor...  
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Essa postagem foi originalmente publicada no Carnaval passado. Como o Velho Magro, o Velho Gordo, a Moça Nova e a turminha do largo do Machado continuam na mesma situação descrita resolvi republicar a postagem. Bom carnaval outra vez. 
Todo mundo já brincou com aquela foto lá em cima. Agora é minha vez. 

dr Marcelo



Esse vídeo, produzido pela Rede Record, é uma reconstituição do dia-a-dia do Dr. Marcelo, médico de uma equipe de Saúde da Família de São Paulo, que atuava junto a cracolândia. Como diz um dos depoentes, onde se via o horror, pessoas de um Não-Lugar, que ninguém chegava perto, ele viu seres humanos com seus dramas. O trabalho de Marcelo foi um tapa na cara da hipocrisia e mexeu com as forças estabelecidas da lei. Assista o vídeo e tire suas conclusões.


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se não abrir no seu navegador tente o link na página da Record:

http://rederecord.r7.com/2012/04/15/internautas-parabenizam-o-domingo-espetacular-por-reportagem-sobre-o-mundo-do-crack/

Estação Consolação




Marcas misteriosas

Números
Estudos arqueológicos
Rachaduras
Ou pinturas rupestres da nova arquitetura?
        LelêRosa vermelha
 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Atitudes hipócritas


O Governo do Estado de São Paulo instituiu a internação compulsória de usuários de drogas, com aparato da saúde, do serviço social e do judiciário (para que, de forma enviesada, se cumprisse a legislação em vigor). A mídia noticiou com galhardia e o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, pomposamente nomeado CRATOD (que lembra mais o crack na pronúncia, que não foi explicitado no nome), teve data e hora para começar com ampla cobertura midiática e seus dez leitos de observação.

Segundo pode ser lido nos jornais, logo no primeiro dia a procura foi além das expectativas e os dez leitos não tiveram tempo de rodar a clientela para a internação na rede de saúde. Inocentemente o Globo noticiou o encaminhamento de alguns pacientes para o Hospital Psiquiátrico Lacan, sem esclarecer que o manicômio já foi escândalo nas manchetes por maus tratos a pacientes psiquiátricos. Os mais esclarecidos entenderam que o remédio era antigo, amargo e com efeitos colaterais conhecidos. Isto é, o Centro midiático era novo e inaugurado como solução pelo governador; dali os pacientes eram encaminhados aos depósitos de sempre. Mas mesmo assim engarrafou e a procura foi bem maior que a esperada. Por quê?

Acontece que a procura não foi feita pela a clientela que o CRATOD visava. A proposta era recolher o desvalido nas cracolândias para fazer de conta que estavam recolhendo compulsoriamente com a autorização da justiça. A procura pelo serviço, no entanto, anunciado em profusão, foi feito pelos familiares e pacientes que precisam de tratamento e não tem uma rede suficiente e necessária para atender a suas necessidades e foram enganados pela mídia. A falta de serviços para o atendimento a esta clientela estrangulou o atendimento do novo equipamento. Coisa de políticos: em vez de melhorar e ampliar os serviços inventam um novo como se inventassem a pólvora. A saúde está cheia destas novidades que só aumenta a desassistência.

O CRATOD foi criado para maquiar a retirada dos pobres e desvalidos que usam crack e incomodam a sociedade. Foi criada para higienizar a cidade. Só que os que querem tratamento e não tem atropelaram o projeto da limpeza urbana. Se tivessem os equipamentos necessários essa população de abandonados também chegaria neles, sem a necessidade de uma regulação da retirada da população de rua para os mesmos manicômios de maus tratos de onde eles fogem como pobres diabos da cruz.

Os pacientes, na demanda espontânea não programada, procuram o Centro de Referência que não tem para onde referir o atendimento. Uma autoridade do CRATOD, apavorado com a procura, disse ao jornal que os pacientes deveriam se dirigir aos CAPS antes de procurarem o Centro de Referência. Não é interessante? Mas não era melhor ampliar o número de CAPS, sabidamente insuficientes para São Paulo, do que apresentar a mágica de um novo serviço, senhora autoridade? Assistimos a atitudes hipócritas.

(Edmar Oliveira)

Latuff faz Caetano apoiando a Aldeia Maracanã

Escuta o cara!


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Política sem-vergonha

ATENÇÃO PARA O VÍDEO:

O vídeo abaixo mostra a crueza da Secretaria de (des)Habitação da Prefeitura do Rio nas comunidades pacificadas.






São os excluídos urbanos marcados para o despejo. Não foi pensada qualquer solução da “revitalização” contemplando os habitantes desses locais que serão reurbanizados. Fala-se num processo de “gentrificação”, palavra importada do inglês “gentry”, que significa “pequena aristocracia”. Os portugueses, mais íntimos da língua mãe, chamam o processo de aburguesamento. Simples assim. Pois bem, nesse processo não cabe os não-burgueses, o lumpesinato, os excluídos. Agora começa ficar claro que o processo de pacificação das UPPs com a proposta de “gentrificação” vai expulsar essa “gente diferenciada”, na denominação crua de uma paulista preconceituosa, das melhorias implantadas. E para usufruir das melhorias o poder público divide a comunidade entre os incluídos, capazes de um aburguesamento, e os excluídos. E para onde irá essa gente?

Gerenciar uma cidade como empresa viola qualquer proposta de “gestão pública”. A cidade deve se associar ao capital e só manterá na sua urbe os cidadãos que possam contribuir para o lucro da empresa. Quem é um estorvo deveria ser demitido, o que significa sua expulsão do território beneficiado. São os sobrantes desse progresso do capital que criam os guetos, os sem-teto, sem-lugar, sem-nada, vítima de uma política sem-vergonha!
 
(Edmar Oliveira)

Laerte

Manifesto da ABRASCO

CONTRA O CRACK: MAIS RESPEITO À CIDADANIA!




Paulo Amarante* e Luis Eugenio de Souza**
O crack é uma droga pesada, que prejudica enormemente a saúde de seus usuários, levando vários à morte, além de comprometer a qualidade de vida das famílias e apresentar custos sociais. Obviamente, não é a única droga a possuir tais características e, em termos populacionais, seus efeitos são menores do que o de outras drogas por conta da menor prevalência relativa de seu uso. De todo modo, o crack, o álcool e todas as substâncias psicoativas consumidas abusivamente exigem respostas sociais que minimizem os malefícios que podem causar à saúde das pessoas.
Na verdade, o aumento da utilização de drogas deve ser visto como um “analisador”, ou seja, como um indicador do que vem acontecendo na sociedade como um todo. A violência, a desigualdade social, a concentração de renda e a falta de perspectivas para as pessoas, sobretudo, das classes populares são fatores determinantes do abuso de substâncias psicoativas. Por isso, são necessárias medidas de caráter político, econômico, educacional e cultural em qualquer proposta séria de enfrentamento desse problema.
Na área da saúde, especificamente, a ação pública é orientada pela Lei nº 10.216 de 2001, que define, claramente, que o tratamento visará, como finalidade permanente, à reinserção social do paciente em seu meio e que, quando necessária, internação será realizada de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
Desta forma, a internação compulsória ou mesmo a involuntária (“aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro”) não podem ser executadas como medidas coletivas, sem os cuidados de caráter clínico e de direitos que a lei estabelece.
Acrescente-se que várias entidades da sociedade civil vêm denunciando que as denominadas cracolândias são áreas de especulação financeira, revalorizadas após a “higienização” promovida pelas internações compulsórias. Outras denúncias dizem respeito ao crescente mercado manicomial de clínicas e “comunidades terapêuticas”, cujos interesses mercantis sobrepõem-se aosobjetivos de cuidar e tratar. Tais denúncias precisam ser apuradas pelos poderes públicos, a quem cabe a defesa dos interesses coletivos e difusos.
A alternativa a medidas isoladas e de pouca eficácia terapêutica, como a internação compulsória, é a constituição de redes de atenção à saúde mental, coordenadas pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A experiência brasileira tem demonstrado a efetividade dessa estratégia, que se deve, fundamentalmente, à criação de vínculo entre a pessoa em tratamento e a equipe de saúde. O trabalho centrado na atenção psicossocial estimula o sujeito a buscar o cuidado e o tratamento.
Nesse sentido, vale registrar que o fracasso do tratamento calcado nas internações compulsória e involuntária (estima-se que mais de 90% destes internados buscam imediatamente a droga logo após a alta) é atribuído exatamente à falta de criação de vínculo entre o usuário e o profissional de saúde, somada, é claro, ao não desejo de se tratar.
Infelizmente, ainda são poucos os CAPS especializados no tratamento de dependência ao álcool e outras drogas no país, especialmente aqueles com atendimento 24 horas, com leitos de suporte para atenção a situações de crise. Do mesmo modo, faltam leitos psiquiátricos em hospitais gerais que compartilhem da mesma proposta e falta apoio a outras iniciativas importantes como os Consultórios de Rua.
Assim, é necessário investir em uma política de Estado que seja sólida, permanente e consistente, e não em medidas imediatistas e paliativas, talvez inspiradas por interesses outros que não o verdadeiro cuidado e tratamento das pessoas com dependência química.
Por tudo isso, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), vem mais uma vez se manifestar contra o uso da internação compulsória como medida principal para enfrentar o problema do consumo de crack ou de qualquer outra droga, associando-se à Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos – Pela Cidadania, Dignidade e Direitos Humanos na Política Sobre Drogas, da qual fazem parte ainda a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), os Conselhos Federais de Psicologia e Serviço Social e outras 50 entidades.
*- Coordenador do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco
**– Presidente da Abrasco
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em: http://www.abrasco.org.br/noticias/noticia_int.php?id_noticia=1153

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

SENSO COMUM X BOM SENSO


Edmar Oliveira
 
O ano acaba com a tramitação de uma nova lei sobre drogas do ensandecido deputado Osmar Terra que se vangloria de fazer a lei que o “povo quer”. É na busca de votos que seu projeto endurece as leis sobre o usuário de drogas, que facilmente será confundido com o traficante, aumentando ainda mais a população dos presídios com jovens infratores sem antecedentes criminais. Se, por sorte, for identificado usuário resta a internação compulsória, pelo projeto tornada legal, e o recolhimento às comunidades religiosas – ditas terapêuticas. Um imenso atraso que joga no lixo a luta de usuários, cientistas sociais e trabalhadores que lidam com o assunto no seu dia-a-dia.

Estávamos, ainda engatinhando, tirando os usuários de drogas do campo da ordem pública para o da saúde pública. Recentemente rolou no território livre da internet uma brincadeira sobre usuários de drogas: como a mídia os via – um monte de zumbis a vagar em via pública; como a sociedade os tinha na conta de doidões irresponsáveis; a família que os viam como estranhos seres no seu seio; eles mesmos se vendo desgarrados da maioria; e na última alegoria como eles realmente são: médicos, engenheiros, estudantes, trabalhadores, enfim gente comum. De certa maneira achei que ali retratava o bom senso, diferente do senso comum das restantes visões.

O senso comum pode está sendo formado pelas aparências. E as aparências muita vezes enganam. O bom senso pede que se consultem especialistas, estudiosos no assunto e a própria comunidade de usuário, em nome de quem se faz a lei, para que a legislação reflita a realidade e não se torne um monstro anacrônico e conservador. Até porque o combate às drogas com a guerra explícita comandada pelos EEUU fez muitos estragos e só agravou o problema. Enquanto eles mesmos e todo o mundo estão tentando lidar com a questão de forma diferente ao senso comum do enfrentamento, o nosso congresso pode aprovar uma lei das cavernas para lidar com esta questão na modernidade. Aqui se precisa de bom senso. Atrás do senso comum a gente retorna ao passado.

E o perigo é a lei valer só para as aparências: para os pretos, pobres e favelados, os que já estavam excluídos antes da droga aparecer em seu caminho. Aí é fascismo.

Dossiê Violações de Direitos Humanos 2a. Ed.


Dossiê Violações de Direitos Humanos 2a ed.
 
 
A Articulação Nacional de Comitês Populares da Copa lançou nesta segunda-feira (18/06) a segunda edição do dossiê "Megaeventos e Violações de Direitos Humanos", que reúne dados e informações sobre impactos de obras e transformações urbanas realizadas para a Copa do Mundo de 2014. O documento será protocolado a diversões órgãos municipais, estaduais, federais e internacionais.
O dossiê está dividido em seis partes - 'Moradia', 'Trabalho', 'Informação, Participação e Representação Popular', 'Meio Ambiente', 'Acesso a serviços e bens públicos e Mobilidade', e 'Segurança Pública' - e traz casos concretos de violações e de desrespeito aos direitos fundamentais dos brasileiros como, por exemplo, o direito à moradia adequada. Cerca de 170 mil famílias estão ameaçadas de remoção no país por obras relacionadas aos megaeventos.

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Se você quiser ver os desalojamentos de famílias nas cidades que vão sediar os jogos da copa click em:

http://portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=198:dossi%C3%AA-nacional-de-viola%C3%A7%C3%B5es-de-direitos-humanos

Ataque estratégico

 
não parece
mas estamos sendo atacados
vidas são ceifadas diariamente

a solidão é um escuro
no ponto da luz encandescente
na tragada tremula dos meninos drogados

e o mundo segue na inquietação impercepitível
da fuga congestionada dos automóveis
 
(Paulo Tabatinga)

anjos


Crianças no frio
Cidade fria

Noite afora vendendo bala
Qual é a hora de dormir?

      
           LelêRosa vermelha

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O não-lugar


Edmar Oliveira
 
A questão do crack está intrinsicamente ligada à forma de desocupação do espaço urbano para a modernização das cidades.

Pereira Passos, tomado da proposta de Haussmann para a Paris do final do século XIX, abre as grandes avenidas, moderniza a cidade acabando com os cortiços, lugares insalubres e de doenças. A saúde ali também foi usada para a retirada dos excluídos de uma cidade que se queria moderna. Não havia lugares para eles. É de quando Pereira Passos alarga a cidade e constrói prédios europeus nas vias públicas, já numa antiga parceria público-privada, que os mais pobres passam a habitar o percurso da linha férrea levando a cidade para o subúrbio. Os bairros operários do Engenho de Dentro, da Piedade; os bairros comerciais de Madureira e Cascadura são dessa época. Havia ainda a crise do café que fez os proprietários de fazendas lotearem a área fazendo uma exclusão entre os excluídos, empurrando para longe da linha férrea os mais desvalidos. A história nos auxilia a entender o presente. Quando há uma desocupação com um mínimo de cuidado com seus moradores construíram-se conjuntos habitacionais onde não havia nada, como foi o caso da cidade de Deus. Sorte dos seus moradores que ela ficou perto da Barra, tempos depois. A especulação também não é planejada.

A ocupação das comunidades carentes, e em poder do tráfico, nas chamadas UPPs, se faz segundo um mapa geográfico de lugares próximos a pontos turísticos para os eventos da Copa e das Olimpíadas. Os mais excluídos entre os excluídos daquelas comunidades perderam também seu espaço e a eles não foi destinado qualquer programa de compensação social. Na cruenta desocupação para a construção do Porto Maravilha também foram expulsos. São esses os condenados a vagarem sem rumo. Habitam um não-lugar. Reúnem-se nos guetos. No lixo de outras comunidades excluídas. Simbolicamente nos dizem que são a sobra, a lixeira desse processo de modernização.

A internação compulsória é uma higienização do espaço público. Retira-se os habitantes daquele não-lugar como se recolhe o lixo. O crack é uma desculpa para que se atinja, de forma radical, a parte visível do iceberg.

Portanto, não é apenas uma questão de saúde pública e é falso o dilema entre o recolhimento da assistência social e o “acolhimento” da saúde. É preciso ver um pouco mais longe. É preciso que esse povo fique aonde existam suas raízes e possa estudar, trabalhar, habitar, ter lazer e, como qualquer ser humano, ter direito a felicidade.

    

SOU CONTRA A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE USUÁRIOS DE CRACK


Contra a internação compulsória a usuários do Crack

Em artigo exclusivo chamado "Sou contra a internação compulsória a usuários do Crack", o integrante do Cebes e professor da Universidade Federal Fluminense Túlio Batista Franco faz um apelo contra a política de internação compulsória de usuários do Crack. "É na propositura do resgate de uma humanidade perdida em algum lugar, em uma sociedade que banaliza o sofrimento alheio que pretendo fazer esta discussão", coloca.
Por Túlio Batista Franco

"Se eu tivesse elevado a minha voz desde o começo em vez de me calar em todas as línguas do mundo…" (Van Gogh)

O título na primeira pessoa é para atribuir o caráter de um texto-manifesto, é meu grito. As cenas de barbárie cometidas contra usuários de crackveiculadas na mídia quase diariamente, nos invade com sua prepotência de uma moral hipócrita, associada a uma política equivocadas de combate às drogas. É na propositura do resgate de uma humanidade perdida em algum lugar, em uma sociedade que banaliza o sofrimento alheio que pretendo fazer esta discussão.
O consumo do crack tem sido apresentado como um problema social, mas não é o único, convivemos ainda com altos índices de violência, exclusão e abandono. E estas questões estão associadas ao alto consumo de crack, que aparece no cenário das existências humanas como a possibilidade de se obter um rápido momento de prazer proporcionado pelo seu consumo. Frente a uma realidade cruel como a sociedade atual se apresenta, busca-se um instante de não-realidade, a desruptura do meio violento, carente, habitado por afetos negativos.
Geralmente quando alguém se vê diante de um outro que consome o crack, não pergunta pra ele e pra si mesmo: _ qual e a sua história de vida? Histórias de vida é coisa de humanos, e o usuário de crack está sendo despido de sua humanidade, algo parecido com o “homo sacer” mencionado porAgamben no seu livro “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua” , aquele que só tinha a própria vida, e nada mais se inscrevia sobre ela, aparecendo como uma “vida nua”, desprovida de tudo, inclusive das representações do humano. O usuário de crack está sendo desumanizado pelo julgamento moral, pela intolerância social, pela generalizada criminalização.
Apesar do enunciado de que o crack é um problema de saúde pública, o tratamento da questão ainda tem um forte caráter repressivo, que opera sobre dois planos. O primeiro agenciado pela política de combate às drogas, que resulta em intolerância, repressão, demonstrada pelo aumento da população carcerária relacionada às drogas desde que a nova Lei de Drogas foi aprovada em agosto de 2006. De 2007 a 2010, essa população aumentou 62,5%, um acréscimo que se deu justamente sobre pessoas que eram rés primárias e não tinham envolvimento com o crime organizado . Os usuários sofrem com abordagens repressivas e violentas.
Descriminalizar é o passo fundamental para políticas mais efetivas de combate às drogas, por parâmetros humanitários e de cidadania.Experiências de controle de uso do crack e outras drogas, onde seu uso foi descriminalizado, os usuários perderam o medo de buscar ajuda, aumentando em muito aqueles que ingressavam nos programas de apoio, cuidado e redes de serviços de saúde. O segundo plano de intervenções se faz pelo recolhimento compulsório e a internação por período de tempo determinado, caracterizando assim uma intervenção e tutela sobre as pessoas, realizada de modo violento e ilegal.


A política de combate ao crack no Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro é atualmente uma das cidades de maior visibilidade no mundo, tendo à frente a realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Isto resulta em grandes intervenções urbanas que preparam a cidade para os eventos. Os efeitos desta intervenção na população mais vulnerável socialmente em geral, e especificamente aos usuários de crack, caracteriza uma política violenta, autoritária, militarizada e anti-cidadã. O recolhimento compulsório usado como dispositivo para impor o tratamento aos usuários tem por base o argumento de que essas pessoas “perderam o governo da sua própria vida” fazendo com que o estado intervenha sobre elas. Com este discurso o governo do Rio de Janeiro legitima junto àpopulação o “arrastão oficial” que rouba os corpos da sua vida por meio violento, os tira da rua encarcerando-os para um suposto projeto terapêutico que comprovadamente é precário e ineficaz.
A práticade internação compulsória é ilegal porque restringe o direito constitucional de ir e vir, ineficaz socialmente, porque o isolamento reforça a descriminação, etecnicamente, pois se sabe que o índice de recaídas para os que passaram por tratamento compulsório é em torno de 96 a 97% , o que faz com que a internação compulsória seja condenada de modo geral, inclusive por programas de combate às drogas de comprovado sucesso, como o de Portugal. A estratégia usada no Rio de Janeiro parte de uma análise simplista da realidade, visa apenas o curtíssimo prazo, e tem um forte agenciamento moral. A política atual no Rio de Janeiro trata o usuário de drogas como algo que deve ser simplesmente removido da paisagem urbana.
A boa notícia no cenário é a perspectiva de criação da Rede de Atenção Psicossocial proposta pelo Ministério da Saúde, que propõe dispositivos de cuidado à população de rua, usuários de crack e outras drogas. Mas a iniciativa encontra-se em estágio inicial, ainda com dificuldades de responder à extensão e urgência do problema. Associa-se no Rio de Janeiro à não-vontade política de construção de uma rede ampla, com capilaridade social e no território que permita intervenções em larga escala através de dispositivos de cuidado.

É possível cuidar sem reprimir

O cuidado aos usuários de crack deve eliminar qualquer hipótese repressiva, e parte da diretriz da descriminalização do uso, reconhecimentodo usuário como cidadão pleno de direitos, merecedor de atenção, respeito, afeto. Vários dispositivos têm sido usados para o cuidado como os consultórios na rua, formados com equipes multiprofissionais e atividade diária junto à população;estratégias de redução de danos com vistas a gerar confiança e criar vínculos entre profissionais da saúde e usuários, tendo em vista projetos terapêuticos mais duradouros e eficazes. Ter uma variada oferta de ações assistenciais e apostar na criação da Rede de Atenção Psicossocial e qualificar o seu funcionamento.
É preciso “parar de perseguir o doente e perseguir a doença”, “trocar prisão por tratamento”, são alguns dos preceitos do programa Português, que já está sendo replicado para Argentina, México, República Checa e mais recentemente a Noruega e é considerado um dos maiores sucessos do mundo . Próximo da nossa cultura, o modelo de Portugal nos serve bem como subsídio. A maior evidência de que o controle do uso de crack e outras drogas pode ser feito sob diretrizes de cidadania, respeito, cuidado, é este programa desenvolvido em Portugal. Abaixo um extrato do relatório "Descriminalização da droga em Portugal: lições para criar políticas justas e bem sucedidas sobre a droga", elaborado pelo constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald e publicado no jornal português “Econômico” em 26/07/2010.

“desde 1 de Julho de 2001, altura em que a aquisição, posse e consumo de qualquer droga estão fora da moldura criminal e passaram a ser violações administrativas, o consumo de droga em Portugal fixou-se ‘entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com estados com regimes de criminalização apertados’. A explicação, segundo Greenwald, reside nas oportunidades de tratamento. ‘As pessoas deixaram de ter medo do sistema judicial e perderam o receio de procurar ajuda. Por outro lado, mesmo as que continuam a consumir são merecedoras da ajuda do Estado’, diz o presidente do IDT. Em 2009, 45 mil pessoas integravam uma das fases de tratamento, incluindo pessoas com problemas de alcoolismo, um número ‘recorde’, segundo João Goulão. E destas 45 mil pessoas, 40% trabalham ou estudam, acrescenta o presidente do IDT”.

Dados de 2006 mostram que a prevalência do consumo de drogas em Portugal desceu de 14,1% para 10,6% face a 2001 nas idades entre os 13 e os 15 anos, e de 27,6% para 21,6% na faixa etária entre os 16 e os 18 anos.

Propostas de cuidado ao crack

Para elaborar um plano de controle ao uso do crack é necessário eliminar qualquer julgamento moral sobre o uso de drogas, considerar como diretrizes gerais a descriminalização do uso, programas de redução de danos, equipes multiprofissionais organizadas em consultórios na rua, estabelecimento de vínculo entre profissionais e usuários, programas de apoio e ajuda para estabelecimento de vínculos sociais, construção de projetos de futuro, sonhos e tudo o que alimenta a existência humana.
Há uma mobilização nacional contra a internação compulsória e medidas repressivas em geral, entre outras, a Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos (FNDDH), tem orientado para várias propostas de cuidado como por exemplo:
• A ampliação e o fortalecimento da rede de atenção psicossocial;
• O incremento das equipes da Estratégia de Saúde da Família e dos Consultórios na Rua, bem como dos NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), como estratégia prioritária no trabalho com os usuários de drogas, diretamente nos seus territórios;
• A ampliação da rede de serviços da assistência social, em cumprimento à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais instituída na Resolução 109 do Conselho Nacional de Assistência Social.
• Garantia de financiamento de políticas públicas nas áreas de cultura, educação, esporte e lazer com a criação de projetos e programas que tratem a questão de forma transversal em parceria com escolas, universidades, Pontos de Cultura, Segundo Tempo, entre outros.
Este é o ponto de partida para o debate mais amplo em torno da construção de um plano de ação para o combate às drogas.

Niterói, 12 de dezembro de 2012.
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publicado em: Blog do Cebes