sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Não-Lugar




Edmar Oliveira
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Tem um não-lugar, aqui mesmo no espaço urbano, entre nós, para onde algumas pessoas são levadas. Carregadas, empurradas, por vontade própria, não vamos aqui discutir como se entra neste não-lugar. Mas acontece com homens, mulheres, crianças e velhos, que deixaram de circular no mesmo espaço em que circulamos, nós que temos a possibilidade de falar desse não-lugar. Eles, pessoas que não mais existem no nosso mundo, não sabem bem explicar como ali chegaram. Escorregaram, foram empurradas, fugiram desse mundo onde estamos, mas ao certo é que chegaram a este não-lugar.

Sou vizinho de um velho magro, que mora sozinho, num casarão em ruínas, mas que já está encontrando seu não-lugar. Pela manhã, sai do casarão passando um cadeado no portão, que não tem mais quase como ficar em pé, e guarda o seu passado na casa velha. Não deve ter nada de valor. Ele guarda a sete chaves para que seu passado não fuja daquele lugar. Mas o velho magro sabe que um dia vai sair de sua casa. Alguém vai querê-la. Fica numa mureta que circunda uma árvore próximo de sua casa. Ali parece habitar um não-lugar. Roupas sujas, cabelos e barbas a muitos esquecidos dos cuidados, a barba branca sempre suja com uma nicotina ruiva, os dedos também. Os óculos, fundo de garrafa, arranhados e embaçados parecem ter catarata, que os olhos do velho magro também têm.

Ao lado do velho magro, vez em quando senta um velho gordo, também de barba, mas sem óculos. As roupas do velho gordo são velhas e sujas, às vezes veste duas, três camisas. Vários pertences num velho carinho de compras com uma roda torta o acompanham. Aquele carrinho parece ser a casa do velho gordo, que já não tem a casa em ruínas do velho magro. O velho gordo carrega sua própria ruína e no carrinho já não cabem as lembranças de quando tinha um lugar. Hoje ele habita um não-lugar.

Cruzo com os dois velhos pela extensão da rua das Laranjeiras que acaba no Largo do Machado. O velho magro sempre encontro andando de volta à casa que ainda não perdeu. Mas como sabe que logo não a terá, procura conhecer aquele não-lugar. O velho gordo senta nos bancos do Largo do Machado como senta ao lado do velho magro na mureta que circunda a árvore na rua das Laranjeiras. O velho magro ainda compra seus cigarros e alguma coisa para comer. Não sei onde ainda consegue dinheiro. Talvez de uma aposentadoria defasada. O velho gordo às vezes encontra uma alma boa que lhe paga um refresco para comer com resto de pão que acha no lixo. Fuma um cachimbo alimentado por guimbas de cigarro que recolhe na via pública. Ninguém os vê. Não recebem qualquer cumprimento dos passantes.

 Às vezes os velhos tomam a calçada estreita dos transeuntes. Os transeuntes preferem esbarrarem nos carros que tocá-los. É quando o não-lugar ocupa o lugar real. Ao cumprimentá-los não respondem, como se não acreditassem que alguém de algum lugar possa cumprimentar que está num não-lugar.

 Deixando meus velhos, posso encontrar uma mulher ainda nova que anda com roupas imundas, fede a excrementos, e carrega pesadas sacolas de livros, na maioria revistas velhas, encarte de jornais datados. Perto de uma escola, na rua Gago Coutinho, ela espalha suas revistas e livros velhos na mureta para vendê-los. Ela nada pede. Vende livros, ou imagina vendê-los. É como se a loucura tentasse tirá-la do não-lugar em que se encontra para que consiga um lugar no mundo aqui conosco. Outro dia levei uma quantidade de livros usados, mas que teriam  valor comercial, para ela. Não agradeceu, mas recebeu parecendo gostar. Outro dia passei e a vendedora estava com os livros expostos na mureta da escola. O máximo que fiz foi ajudar sua loucura a não se conformar com o não-lugar. Vender e se relacionar com alguém, é ter um lugar por um momento. Mas sei que a noite dorme na rua no seu não-lugar e come migalhas das latas de lixo num garimpo por comida comuns aos que habitam o não-lugar.

No Largo do Machado, à noite, meninos e meninas (algumas grávidas) agitam-se em bandos. Com eles alguns adultos jovens. Homens, mulheres, casais, filhos. Consomem tinner (cola de sapateiro) em garrafas de refrigerantes, álcool da tampa azul (álcool puro do supermercado) e crack em cachimbos. A mistura é explosiva, às vezes brigam. Outras brincam com a inocência das brincadeiras infantis junto com o vício de adultos. Também habitam um não-lugar. Como são muitos o não-lugar ocupa o espaço dos lugares reais. Costumam se reunirem mais à noite, tarde, quando o não-lugar pode se alargar no lugar do lugar real. Mas incomodam agora. Até porque o crack, antes ausente, é cocaína e um excitante que apaga a depressão causada pelo tinner.

É quando as políticas sociais aparecem para combater os efeitos, não as causas, que nunca ninguém se importou muito com isso. E as políticas parecem sempre estar incomodadas com o não-lugar aqui perto e não com as pessoas. Os invisíveis só se tornam visíveis quando o não-lugar ocupa o lugar do lugar do mundo real que não lhes tem mais lugar. Agora os vemos. E eles não são mais o velho magro, o velho gordo, a moça nova, os meninos da praça. Mas uma horda que ameaça o bem estar social. Só o poeta sabe cantar essa dor...  
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Essa postagem foi originalmente publicada no Carnaval passado. Como o Velho Magro, o Velho Gordo, a Moça Nova e a turminha do largo do Machado continuam na mesma situação descrita resolvi republicar a postagem. Bom carnaval outra vez. 
Todo mundo já brincou com aquela foto lá em cima. Agora é minha vez. 

2 comentários:

Leonardo Almeida Filho disse...

Muito boa crônica, Edmar. Uma tristeza lívida, espanto familiar.

alexandre bhering disse...

querido edmar que prazer sua crônica . Acho que trabalhamos juntos no Pedro II anos atrás e o vejo em plena forma . Agradeço sua reflexão , uma chamada para a questão de como os sólidos perdem arazão de ser quando não interessam mais .