Edmar Oliveira (Fala pronunciada no Seminário acima referido)
Cumprimentando
os ilustres companheiros de mesa, quero saudar os integrantes dessa platéia que
prestigia o lançamento dessa frente de luta em momento tão oportuno,
agradecendo o convite para essa discussão.
E
muito apropriado é o tema desta mesa, que tenho a honra de participar: Combate
às Drogas ou Direitos Humanos? Porque os direitos humanos são
desrespeitados sempre que se faz um combate, um enfrentamento ou uma guerra às
drogas. Observem que sempre que se discute um problema relacionado às drogas o
jargão militar e as ações de guerra para o “combate ao inimigo” estão
presentes.
A
constituição de 1988 aboliu a pena de morte para crimes não militares, mas ela
é prevista para um estado de exceção, para os crimes de guerra. E talvez esse
regime de exceção exista, meio que não inteiramente explicitado, no combate ao
crime de tráfico. A “lei do abate” para aeronaves que entrem no território
brasileiro de forma ilegal é um apêndice deste regime de exceção, mesmo não
havendo guerra declarada.
Não
quero aqui entrar numa discussão jurídica sobre o assunto, por total ignorância
do tema, mas arrisco alguns palpites para dizer que, na prática, a pena de
morte é permitida pela sociedade, quando ela não questiona, e quase sempre
concorda e aplaude, os “atos de resistência” onde “traficantes” são mortos em
ações policiais.
E
quem são os “traficantes” eliminados? Embora a lei 11.343 de agosto de 2006 se
proponha a prescrever “medidas para prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes de drogas”,
e pareça uma legislação moderna neste aspecto;
nos artigos em que “estabelece normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas” afirma
que “caberá
pena de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos para quem importar, exportar,
remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda,
oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,
ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Até um
médico bem intencionado que aconselhe o usuário a usar maconha em vez do
crack pode ser indiciado por
“prescrever” a droga, o que na interpretação da lei pode justificar a acusação
de traficante. Apesar dos vários atenuantes às penas, o entendimento da lei
pode confundir o usuário com o comerciante ilegal, ou o usuário que oferece a
sua droga e o familiar que permite a guarda da substância ilegal com um
traficante. E de certo há uma tendência para a sociedade entender a pessoa de
classe média como usuária e o pobre como traficante.
E na questão do confronto sem testemunhas quando
são afirmados os “autos de resistência” a tendência do ministério público é
arquivar o que poderia ser um processo para julgamento da conduta de nossos
policiais, porque, afinal, o traficante, também armado, foi abatido em um ato
de guerra declarada. A guerra às drogas.
É tão gritante
como nossa sociedade concorda com esta guerra e aplaude a morte de
“traficantes”, que uma mãe quando vem em público pedir justiça para o filho
abatido pela polícia, chora a morte de um “trabalhador” porque até a mãe
aceitaria a morte do filho se ele fosse um traficante. Absoluta concordância
que a sociedade tem à guerra as drogas.
Mas quem é o abatido ou o prisioneiro das penas
duras previstas em lei? O que “traz consigo”, o “que transporta”, o “que
oferece”, o “que guarda”, o “que compra”; ou o verdadeiro traficante de uma
mercadoria ilícita trazida de um local a outro?
Geralmente o pequeno comerciante de substâncias ilegais não é
responsável pelo tráfego que caracteriza o tráfico, mas é ele
quem lota as delegacias na espera de um julgamento às vezes maior que a pena,
quando não foi abatido em um “auto de resistência”.
“Auto de
resistência” foi criado na ditadura a fim de justificar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. No
entanto o art. 292 do Código de Processo Penal
explicita: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à
prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as
pessoas que o autorizarem poderão usar dos meios necessários para defender-se
ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto, subscrito também por
duas testemunhas”. Ocorre que as duas testemunhas podem ser policiais e os
signatários podem definir se “tudo viu e assistiu” ou se “de tudo tomou
conhecimento”, que é uma testemunha bastante evasiva e faz crível a versão do
colega.
Todos se lembram do “auto de resistência” que foi filmado por um
anônimo num terreno baldio da Barra da Tijuca e divulgado amplamente na televisão.
E o combate se tornou armado por ausência crônica do Estado em
comunidades onde a droga é a principal atividade econômica. Qualquer atividade
ilegal pressupõe o terror, por ausência da lei, para garantir a prosperidade
dessa atividade. Do “inocente” jogo do bicho à TV a cabo clandestina; da
distribuição exclusiva do gás de cozinha passando pelo tráfico de drogas.
A milícia foi saudada pelo atual prefeito, ainda candidato ao
primeiro mandato, como um mal necessário, que livraria a comunidade da violência
do tráfico. O que se verificou foi que ela, tendo conquistado um território,
impõe o poder do terror para garantir seus lucros ilegais e, rapidamente, passa
a administrar os negócios escusos dos traficantes, inclusive o próprio tráfico
de drogas. De forma mais perversa: é organização paramilitar formada por
agentes do Estado e, às vezes, protegida pela parte militar e legal do aparelho
de Estado. O mal menor, na equívoca definição do prefeito, agora domina o
transporte coletivo dessas comunidades com um enorme prejuízo financeiro para o
Estado e para o transporte legalizado. Após a reeleição o prefeito já anuncia
um combate a esta atividade ilegal, invertendo seu discurso anterior. A
expansão econômica ilegal é tão predatória quanto qualquer outra empresa
capitalista. Devemos lembrar que sempre os negócios ilegais alimentam o
capitalismo financeiro de forma decisiva. Recentemente as atividades de um
banco espanhol foram ligadas ao tráfico de drogas do México para os EEUU.
Na ausência do Estado os negócios escusos crescem numa expansão
predatória garantida pelo poder de fogo do grupo negociante. Foi a ausência do
Estado que permitiu que esses grupos se armassem de forma desproporcional ao
próprio aparelho de Estado. A instalação das UPPs, como um projeto de
pacificação que gera dividendos políticos, apenas ocupou a comunidade com a
força policial, projeto que não se sustenta em longo prazo, se também o Estado
não ocupar essas comunidade com serviços públicos de qualidade que promovam um
bem estar social. Recentemente um projeto de filme, feito por jovens
universitários, chamado “Domínio Público”[1]
vem denunciando que a ocupação das UPPs obedece ao cinturão onde teremos
equipamentos para a Copa e as Olimpíadas. E com o desarme dos grupos de
traficantes, são agora os soldados legais quem garante a desocupação de imóveis
para que façam parte da parceria público-privado que ocuparão esses espaços com
o nome de “revitalização”. Ou seja, há remoção de comunidades para o projeto de
modernização da forma empresarial de administrar a cidade. Criminalizar a
pobreza é uma tarefa desta empresa, do empresariado e da mídia.
Mas vamos voltar ao nosso traficante, o que morre nos “auto de
resistência” e o que é preso nas operações de guerra ao tráfico: Orlando
Zaccone, delegado e estudioso do direito, transformou sua tese de mestrado num
livro chamado “Acionistas do nada”, mostrando que esses “traficantes”,
comerciantes ilegais da ponta do sistema não lucram como os produtores e
negociantes internacionais da droga. Os comerciantes de substâncias ilegais
podem ser comparados a donos de botequim que comercializam drogas legais. O
lucro deste, comparado ao dos fabricantes e distribuidores da droga lícita, o
álcool ou tabaco, são irrisórios. Assim também é o lucro do vendedor de drogas
ilegais em relação aos distribuidores e fabricantes. E esse “traficante” da
ponta é descartável e substituível, enquanto o negócio das drogas ilícitas
prospera como a quarta maior economia do mundo.
Mas é a esse “traficante” que a guerra é declarada, com mortes
violentas aos dois lados em guerra. E entre este “traficante” e a força
policial há os que “oferecem, tem em depósito, transportam, trazem consigo, guardam, entregam
ou fornecem drogas”, os que estão fazendo uso sem autorização ou em desacordo com
determinação legal. E esses também tombam e são presos como “traficantes”,
quando se quer usar o rigor da lei. É essa guerra que faz
muito mais mal à saúde pública do que o efeito da droga em si. Portanto,
pode-se concluir que o efeito da guerra é pior do que a lesão à saúde pública
que a droga produz (que é o princípio da “lesividade” do crime de tráfico de
drogas).
Mas também, de nossa parte, quando tiramos o usuário da esfera
da ordem pública para a saúde pública, ajudamos a formar um conceito de categoria
moral: o traficante é o mal, o usuário a vítima, que precisa de ações da saúde.
Com isso ajudamos a construir um raciocínio em que a saúde pública deve
intervir na saúde individual para ajudar a vítima, e a internação compulsória
viola o princípio do direito individual e da autonomia. A saúde pública é a disciplina
que trata da proteção da saúde a nível populacional. Neste sentido, procura
melhorar as condições de saúde das comunidades através da promoção de estilos
de vida saudáveis, das campanhas de sensibilização, da educação e da
investigação. Nas populações marginalizadas não há qualquer ação de saúde
pública, entre outras deficiências do Estado. Portanto o recolhimento das
individualidades não é ação de saúde pública (que não é, absolutamente, a soma
das saúdes individuais, como querem alguns agentes do Estado).
A sociedade tende a distribuir valores positivos e
valores negativos na mesma proporção de desigualdade entre os privilegiados e
marginalizados. Os primeiros têm mais bens, mais estudo, mais trabalho, mas
também menos trambiqueiros, menos traficantes, menos bandidos, menos violência.
Nos segundo o contrário. Portanto essa distribuição desigual de valores,
criminaliza de antemão as comunidades mais pobres.
O nosso usuário está ali, comprando, vendendo para
sustentar o vício, fornecendo a amigos, sendo informante ou trabalhando para o
tráfico, impedindo uma separação real, pela legislação em vigor, entre quem é
traficante e quem consome.
Essa guerra, necessariamente, inflige os direitos
humanos dessas comunidades. Não há guerra que respeite a integralidade desses
direitos. E a detenção, pela polícia ou pela medicina, também não respeita os
direitos humanos quando viola as liberdades individuais e as
confunde com a proteção da saúde pública que é outra coisa.
Recentemente, os entes federados fizeram uma
“Oficina de Alinhamento Conceitual do Plano Crack” tentando uma aproximação de
três eixos: a autoridade, o cuidado, a prevenção. A autoridade é um eufemismo
para o uso da força, o cuidado foi traduzido pelo recolhimento compulsório, a
prevenção em tênues programas de informação. Embora o pessoal da saúde tenha
reafirmado sua fé nos conceitos de vulnerabilidade, direitos humanos e redução
de danos, a conjunção desses três eixos resultou em ações repressivas e recolhimento compulsório do usuário em flagrante
desrespeito aos direitos humanos, passando por cima dos conceitos de
vulnerabilidade e redução de danos.
Portanto, senhoras e senhores, temos uma grande
luta pela frente quando firmamos o compromisso de militar numa frente que discuta a inconciliável relação entre
combate às drogas e direitos humanos. Como o título da mesa propõe temos que
tomar partido entre uma coisa ou outra. E não há combate, enfrentamento, guerra
que garanta os direitos humanos do “inimigo”.
Desmond Tutu foi incisivo quando disse: “se você é
neutro em questão de injustiça, você escolheu o lado do opressor”.
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