quinta-feira, 5 de julho de 2012

de náufragos, de ratos



Quem se debruçar para olhar o drama dos excluídos urbanos passa a ter uma sensação de que a sociedade abandonou uma parte de si mesma. Parece um pedaço do corpo social que não mais lhe pertence e tem de ser extirpado antes que contamine o resto que se julga são. 

Não há qualquer relação dos transeuntes intencionais com os transeuntes náufragos. Mas os últimos incomodam os primeiros de tal forma que deixam os náufragos à deriva, sem tábua de salvação, restando-lhes o afogamento. 

E o cuidado que ambos os grupos têm com os animais são iguais em intensidade, mas diferentes no intento. Alguns incluídos solitários amam seus animais na devida proporção em que detestam os excluídos. Os excluídos amam os seus animais na mesma proporção em que não existem para os seus semelhantes enquanto tais. E os animais de estimação para ambos os grupos são os cães e gatos. Fossem os grupamentos humanos animais estariam identificados como gatos e ratos. Os ratos, os excluídos, vagam debaixo de viadutos, deitados ao relento, afogados nas sarjetas. Os ratos precisam das sobras dos gatos para sobreviver. E os gatos, os incluídos, não lhes dão trégua, querendo-os longe da vista. Muito ao longe.

E o Estado, sem qualquer política de inclusão social, recolhe os excluídos das ruas para trancafiá-los em presídios com o nome falso de abrigo. Fosse esses depósitos de gente trancafiada abrigo verdadeiro, de lá não se fugia e eles careciam de grades quais hospícios, quais prisões, tal e qual uma instituição total de modelo descrito por Goffman. 

Os náufragos, ratos, não abandonaram o navio. O navio nunca existiu para eles. E o Estado não lhes salvam do afogamento, trancafiam-nos em tumbas onde vagam como mortos vivos. E se conseguem fugir, voltam ao afogamento como náufragos, ratos outra vez, e mais outras até que a morte venha para o descanso eterno de quem não teve um lugar em vida...

(Edmar Oliveira)

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