Importante matéria sobre o assunto que invadiu as redes sociais, abaixo:
Maria Kemper, especial especial para "Os Excluídos Urbanos"
Já faz tempo, ainda mais pra nossa memória curta e ocupada
com um excesso de informações tão avassalador que é inassimilável. Mas a
história de um menino inteiramente desprovido de tudo, massacrado por uma
“repórter” num desses programas sensacionalistas baratos não me passou batida,
como também não passou a tanta gente que comentou na época, nas redes sociais
que tornaram visível esse rapaz invisível. (Só não escrevi antes porque toda a
minha capacidade de escrita estava sendo ocupada pela minha dissertação de
mestrado).
Pra quem não acompanhou na época, trata-se de uma suposta
jornalista que se arvora a justiceira, condenando, ironizando e humilhando um
rapaz detido por roubo e suspeito de estupro (http://www.youtube.com/watch?v=F6VCbJHtzdc). A cena dantesca traz vários
questionamentos: sobre esse tipo de programa, que fere às finalidades
educativas e culturais da concessão pública televisiva; sobre o papel da mídia
na nossa cultura da desigualdade e da criminalização da pobreza; sobre a
questão ética da suposta repórter; ou a interrogação quanto ao acesso que esses
programas têm às delegacias e aos detidos. Mas o que é interessante é que esse
rapaz, ao ser cruelmente desprezado pela entrevistadora, paradoxalmente sai de
sua invisibilidade e vira tema de discussão nas redes sociais. O garoto, negro,
algemado, desdentado e com um hematoma no rosto, vira centro das atenções,
provavelmente pela primeira vez na vida, sob luz, câmera e um microfone
perverso, a partir da ira da loira defensora dos bons costumes e do bom
português.
Não são nada grandes as chances de cruzar a fronteira da
exclusão. Paulo Sérgio, que nunca teve pão, curiosamente conseguiu deixar o
anonimato, virando circo, a partir de seu crime. E foi assim, por acaso, que
entrou no enquadre da Justiça, da qual tanto os miseráveis quanto os abastados
são exceção. Ele agora tem a seu favor um processo de danos morais, além da
possibilidade de responder ao seu delito dentro dos trâmites legais, em vez de
ser mais um invisível esquecido no sistema prisional. Paulo Sérgio, que
é analfabeto, tem seis irmãos e vive nas ruas desde criança, era
um fora-da-lei, pois sem direitos e sem deveres. Era um marginal não só no
sentido de quem comete um crime, mas de quem vive à margem, fora da Lei, porque
fora do pacto social, daquilo que é compartilhado.
O excluído é invisível. Olha-se pro lado oposto, evitando-se
a pobreza, pra não se entrar em contato com algo do horror, do estranho, do
outro, que, defensivamente, deve ser negado. O estranho,
o bárbaro, vira inimigo, que
deve e merece ser açoitado em horário nobre. O marginal é a causa da
tão temida violência que precisa ser fortemente combatida, evitando-se a
invasão do de fora da margem com muros, grades, controles de segurança!
Pois infelizmente
parece que é justamente só através da violência que esses invisíveis ganham
algum olhar, nem que seja este do temor e do horror. Ser marginal, agora como
aquele que rouba ou fere os bons costumes, é uma solução identitária para quem
nunca foi visto, é uma resposta à falta de pertencimento, ou justamente um
reflexo deste lugar, ou não-lugar social, à margem, que tantos meninos como
Paulo Sérgio ocupam.
A possibilidade de reconhecimento é condição fundamental
para uma existência que reduza a miséria, não só a social, mas a miséria da
alma, que é algo comum a todos nós, que nascemos desamparados. Tomara que Paulo
Sérgio possa se manter reconhecido e, a partir disso, possa começar a contar
sua própria historia, deixando de ser para nós apenas um representante de
tantos excluídos.
Quando olho sou visto, logo existo.
Agora tenho como olhar e ver.
Agora olho com criatividade (…).
(Winnicott, 1994, p. 157)
referências:
Bastos, L.A. “ Caminho para
as Índias: trauma, compulsão e repetição.” XXII
Congresso Brasileiro de Psicanálise. 29 avril - 2 mai 2009. Rio de Janeiro,
2009.
__________. “Exclusão social: aspectos
traumáticos da violência contemporânea.” Revista
Brasileira de Psicanálise, 2006: 57-60.
REIS, E. “Doces e amargos bárbaros.” Polêmica, abril 2012, Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/2985/2132.
Viñar, M. “Qué puede decir
un psicoanalista sobre exclusión social?” Rio,
que cidade é essa? . Rio de Janeiro: SBPRJ, 26 octobre 2007.
Winnicott, D.W. A comunicação entre o
bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências”. Os bebês e suas mães. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.
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