quarta-feira, 11 de julho de 2012

O “monstro” e a “justiceira”

Repórter acusa rapaz de estuprador sem provas e faz "gracinhas" ao vivo. A mídia exerce o seu papel de formador de opinião de maneira absurda, abjeta e imoral. Isso não pode continuar. É preciso uma regulação de deformações como esta. Ou não?



Importante matéria sobre o assunto que invadiu as redes sociais, abaixo:


Maria Kemper, especial  especial para "Os Excluídos Urbanos"

Já faz tempo, ainda mais pra nossa memória curta e ocupada com um excesso de informações tão avassalador que é inassimilável. Mas a história de um menino inteiramente desprovido de tudo, massacrado por uma “repórter” num desses programas sensacionalistas baratos não me passou batida, como também não passou a tanta gente que comentou na época, nas redes sociais que tornaram visível esse rapaz invisível. (Só não escrevi antes porque toda a minha capacidade de escrita estava sendo ocupada pela minha dissertação de mestrado).

Pra quem não acompanhou na época, trata-se de uma suposta jornalista que se arvora a justiceira, condenando, ironizando e humilhando um rapaz detido por roubo e suspeito de estupro (http://www.youtube.com/watch?v=F6VCbJHtzdc). A cena dantesca traz vários questionamentos: sobre esse tipo de programa, que fere às finalidades educativas e culturais da concessão pública televisiva; sobre o papel da mídia na nossa cultura da desigualdade e da criminalização da pobreza; sobre a questão ética da suposta repórter; ou a interrogação quanto ao acesso que esses programas têm às delegacias e aos detidos. Mas o que é interessante é que esse rapaz, ao ser cruelmente desprezado pela entrevistadora, paradoxalmente sai de sua invisibilidade e vira tema de discussão nas redes sociais. O garoto, negro, algemado, desdentado e com um hematoma no rosto, vira centro das atenções, provavelmente pela primeira vez na vida, sob luz, câmera e um microfone perverso, a partir da ira da loira defensora dos bons costumes e do bom português.

Não são nada grandes as chances de cruzar a fronteira da exclusão. Paulo Sérgio, que nunca teve pão, curiosamente conseguiu deixar o anonimato, virando circo, a partir de seu crime. E foi assim, por acaso, que entrou no enquadre da Justiça, da qual tanto os miseráveis quanto os abastados são exceção. Ele agora tem a seu favor um processo de danos morais, além da possibilidade de responder ao seu delito dentro dos trâmites legais, em vez de ser mais um invisível esquecido no sistema prisional. Paulo Sérgio, que é analfabeto, tem seis irmãos e vive nas ruas desde criança, era um fora-da-lei, pois sem direitos e sem deveres. Era um marginal não só no sentido de quem comete um crime, mas de quem vive à margem, fora da Lei, porque fora do pacto social, daquilo que é compartilhado.

O excluído é invisível. Olha-se pro lado oposto, evitando-se a pobreza, pra não se entrar em contato com algo do horror, do estranho, do outro, que, defensivamente, deve ser negado. O estranho, o bárbaro, vira inimigo, que deve e merece ser açoitado em horário nobre. O marginal é a causa da tão temida violência que precisa ser fortemente combatida, evitando-se a invasão do de fora da margem com muros, grades, controles de segurança!

Pois infelizmente parece que é justamente só através da violência que esses invisíveis ganham algum olhar, nem que seja este do temor e do horror. Ser marginal, agora como aquele que rouba ou fere os bons costumes, é uma solução identitária para quem nunca foi visto, é uma resposta à falta de pertencimento, ou justamente um reflexo deste lugar, ou não-lugar social, à margem, que tantos meninos como Paulo Sérgio ocupam.

A possibilidade de reconhecimento é condição fundamental para uma existência que reduza a miséria, não só a social, mas a miséria da alma, que é algo comum a todos nós, que nascemos desamparados. Tomara que Paulo Sérgio possa se manter reconhecido e, a partir disso, possa começar a contar sua própria historia, deixando de ser para nós apenas um representante de tantos excluídos.

Quando olho sou visto, logo existo.

Agora tenho como olhar e ver.

Agora olho com criatividade (…).

(Winnicott, 1994, p. 157)



referências:

Bastos, L.A. “ Caminho para as Índias: trauma, compulsão e repetição.” XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise. 29 avril - 2 mai 2009. Rio de Janeiro, 2009.

__________. “Exclusão social: aspectos traumáticos da violência contemporânea.” Revista Brasileira de Psicanálise, 2006: 57-60.

REIS, E. “Doces e amargos bárbaros.” Polêmica, abril 2012, Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/2985/2132.

Viñar, M. “Qué puede decir un psicoanalista sobre exclusión social?” Rio, que cidade é essa? . Rio de Janeiro: SBPRJ, 26 octobre 2007.

Winnicott, D.W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências”. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1994.




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