Correio
Braziliense
06/08/12
Os sapatos de Pepe
Edmar Oliveira
Na
reunião do Mercosul, em Brasília, para referendar a entrada da Venezuela no
grupo, chama a atenção uma foto em que os representantes estão reunidos. Nela,
o fotógrafo tentou mostrar uma gafe. Chávez, Dilma e Cristina riem dos sapatos
de José Mujica, o Pepe, presidente do Uruguai. A foto pode falar: enquanto os
três parecem desaprovar, Pepe, com as mãos abertas e estendidas à frente,
parece dizer: "O que é que tem? Estão sujas de barro da terra. É que
estava plantando hortaliças e saí apressado para essa reunião".
Nada
a estranhar. Pepe é reconhecido por seu despojamento aos bens materiais e apego
ao poder. Não tem seguranças. É visto dirigindo o seu Fusca, das antigas, nas
ruas de Montevidéu. Faz a doação de 90% do salário a instituições de ajuda aos
pobres. Trabalha na sua chácara, daí os pés sujos. Em suma, leva uma vida
espartana, completamente diferente dos que riem dele. E de outros também.
Não
quero aqui que os seus parceiros de Mercosul usem sapatos sujos e também que o
imitem nas excentricidades de andar num Fusca e doar parte do salário. Mas
essas posturas têm consequências na prática. A sensibilidade de perceber o
drama dos comuns e até dos diferentes e excluídos.
Pois
Pepe anuncia que vai descriminalizar o uso das drogas. No caso da maconha,
cadastrar usuários e distribuir, digamos, uma "ração" mensal. Assim,
afasta os usuários dos traficantes, porque não é a maconha a porta de entrada
para drogas mais pesadas. Mas o traficante é, quando nega a droga mais leve
para introduzir a mais nociva, pensando no lucro.
O
plano do governo de José Mujica se assenta em estratégias que combinam
descriminalização do usuário, legalização controlada pelo Estado de uma droga
menos nociva e desarticulação da cadeia comercial do narcotráfico. A
legalização controlada pretende fornecer a custos reais cigarros de maconha
para usuários cadastrados no programa governamental, residentes no país,
cuidando para não haver uma exportação da droga sob controle.
O
resultado esperado é uma diminuição da criminalidade e da violência; uma
migração dos usuários da pasta-base de cocaína para a maconha produzida pelo
Estado, interrompendo a cadeia comercial do narcotráfico; o oferecimento do
tratamento a usuários que não precisam mais do esconderijo no gueto da
ilegalidade; a possibilidade da discussão dos malefícios das drogas, onde as
lícitas (álcool e cigarro) hoje oneram mais ao sistema de saúde.
O
ministro da Defesa do Uruguai declarou à imprensa que "a proibição de
certas drogas está criando mais problemas à sociedade que a própria
droga". Com relação à maconha, acrescentou: "É preciso eliminar esse
veto à maconha, iniciado em 1971 por uma errônea decisão do presidente dos
Estados Unidos, Nixon. Ele provocou todo esse desastre que vivemos, declarando
uma guerra às drogas que foi ganha pelos narcotraficantes".
É
uma intenção que deverá ser reavaliada mais tarde. Mas sai das políticas
proibicionistas repetitivas, onde a repressão confunde traficantes e usuários,
com a agravante de um círculo vicioso: o usuário sempre acha o traficante, e a
polícia quase sempre só prende o usuário. Drogas sempre existirão. É preciso
políticas de convívio e não de extermínio às drogas. Isso nunca foi viável na
história da humanidade.
Nada
se copia, nem os sapatos do Pepe, nem seu programa de descriminalização das
drogas. Mas as autoridades risonhas deveriam entender que a guerra às drogas
fez chorar muitas famílias ao fazer um combate sistemático na criminalização da
pobreza. As prisões estão cheias de usuários assemelhados indevidamente a
traficantes. E se os pés desses governantes não estão sujos, as mãos podem
estar. Não se lava as mãos à guerra às drogas. É preciso paz. É preciso uma
política de descriminalização e, também, de atenção aos usuários na situação
social, de trabalho, educação, moradia, lazer e saúde. Não deve ser uma
política de "vencer" a droga, mas uma política de "ajudar"
o usuário.
E,
voltando à reunião do Mercosul, só tem sentido um crescimento econômico da
região para uma maior aplicação em políticas públicas. O Estado não pode ser
gerenciado como uma empresa que produz lucros e empresta dinheiro a outras
empresas. Por ironia, o Brasil passou de devedor a credor do FMI. No Cone Sul,
a educação está muito aquém do desenvolvimento, produzindo excluídos que são as
maiores vítimas das drogas. Que a saúde pública precisa de mais recursos é
visível nos corredores dos hospitais superlotados. O que o Estado produz em
riquezas deve ser gasto para o bem-estar do povo. É para isso que governos são
eleitos. Pena que estão fazendo a população esquecer. Os sapatos do Pepe talvez
lembrem que os governantes devem ter os pés no chão.
Um comentário:
Muito, muito bom.
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